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Mpox e o Direito à Saúde: Dever Estatal, Proteção Social e Combate ao Estigma

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Nos últimos anos, o mundo enfrentou novos desafios sanitários que colocaram à prova os sistemas de saúde e os marcos jurídicos voltados à proteção da vida e da dignidade humana. Um dos temas que emergiu nesse contexto foi a mpox — nome adotado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para a antiga “varíola dos macacos”, a fim de evitar termos discriminatórios e estigmatizantes.

A mpox é uma infecção viral causada por um orthopoxvírus, similar ao vírus da varíola humana, embora com menor letalidade. A transmissão se dá por contato direto com lesões cutâneas, secreções respiratórias, fluidos corporais ou materiais contaminados. Os sintomas incluem febre, dores musculares, aumento dos linfonodos e lesões dermatológicas características, que podem causar dor, sofrimento e, em casos graves, complicações clínicas severas.

Do ponto de vista jurídico e constitucional, o enfrentamento de emergências sanitárias como a mpox impõe ao Estado brasileiro obrigações intransferíveis. O art. 196 da Constituição Federal estabelece que a saúde é direito de todos e dever do Estado, devendo ser garantida mediante políticas públicas que visem ao acesso universal e igualitário. A Lei nº 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde) reforça que a integralidade do atendimento compreende ações de promoção, prevenção e recuperação da saúde, obrigando a atuação governamental de forma imediata, contínua e eficaz.

A inclusão da mpox na lista nacional de doenças de notificação compulsória obriga os profissionais e serviços de saúde a comunicarem casos suspeitos ou confirmados ao sistema público. Tal medida encontra respaldo na Portaria GM/MS nº 1.061/2022, editada no contexto da emergência internacional decretada pela OMS, a qual vigorou até 2023. A notificação é medida essencial para que o Estado possa mapear, conter e tratar surtos com base em evidências epidemiológicas.

Contudo, o aspecto mais delicado do enfrentamento da mpox envolve o risco de estigmatização. Em sua fase inicial, o surto afetou de forma desproporcional homens que fazem sexo com homens (HSH), levando a uma série de conteúdos preconceituosos e práticas discriminatórias, inclusive dentro de instituições de saúde. Esse cenário reforça a importância da aplicação dos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) e da igualdade no acesso aos serviços públicos (art. 5º, caput, CF), sob pena de se perpetuar uma estrutura de exclusão institucionalizada.

A Justiça brasileira, em consonância com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, já firmou entendimento de que o direito à saúde deve ser exercido de forma livre de qualquer forma de discriminação, assegurando especial proteção a grupos em situação de vulnerabilidade. Dessa forma, o Poder Judiciário pode e deve ser acionado não apenas para garantir o fornecimento de insumos e tratamentos, mas também para proteger a integridade física e moral dos pacientes frente a eventuais abusos, omissões ou discursos de ódio.

Enquanto advogado atuante no campo do Direito da Saúde, reafirmo que o enfrentamento da mpox — assim como de qualquer outra enfermidade — exige mais do que políticas públicas técnicas: exige compromisso com os direitos humanos, com a transparência, com o combate ao preconceito e com a responsabilidade institucional. O acesso à informação correta, ao diagnóstico rápido e ao tratamento digno não pode depender de classe social, identidade de gênero, orientação sexual ou região geográfica.

Seja por meio de medidas administrativas, ações judiciais ou atuação política, é essencial que o Direito se mantenha vigilante e proativo na defesa da saúde pública, sobretudo quando a inércia estatal, o negacionismo ou o preconceito colocam em risco a vida de milhares de brasileiros.


Dr. Vladimir Saboia
Advogado Especialista em Direito da Saúde e Políticas Públicas
Presidente da Comissão de Direito Canábico da OAB/RJ
vladimirsaboia.blog.br | @dr.vladimirsaboi

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