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STF e STJ alinhados na descriminalização e cultivo individual de maconha

Enquanto Congresso e governo federal se omitem de sua função constitucional de atualizar a política de drogas no Brasil, os tribunais superiores avançam. A última mudança na área foi há 17 anos, quando se tentou – de forma bem intencionada – distinguir o usuário do traficante. Nesse período, porém, a atual “lei de Drogas” (11.343/06) se mostrou uma calamidade. E apesar do mundo ocidental caminhar pela descriminalização e até a legalização de substâncias, a classe política do Brasil defende a manutenção da chamada guerra às drogas, restando ao Judiciário essa responsabilidade.

Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça, de 2006 até 2018 o Brasil foi de 401 mil para 840 mil presos1. O número mais que dobrou em 12 anos, nos fazendo a terceira população carcerária do mundo. Essa política não resultou em qualquer índice positivo no combate ao narcotráfico. Inclusive, o Brasil foi considerado no ano de 2021 como a pior política de drogas do mundo pelo relatório Global Drug Policy Index2.

Um dos poucos avanços que o país protagonizou nos últimos anos foram as autorizações judiciais para plantio doméstico de maconha por pacientes. Foram centenas de decisões favoráveis em diferentes instâncias – estaduais e federais – e pelas vias criminal e cível. Até que, em setembro de 2023, o STJ consolidou posição sobre a concessão de habeas corpus para a atividade3. Pela decisão, quem puder comprovar a necessidade de tratamento pode buscar o salvo-conduto na esfera estadual para plantar sem risco de ser preso.

A 3ª Seção do STJ analisou o tema após o ministro Messod Azulay, que tomara posse em dezembro de 2022, propor uma revisão de entendimento firmado nove meses antes. Para o magistrado, o HC não seria mais cabível, uma vez que o país já dispõe de oferta de medicamentos à base de cannabis nas farmácias, e que o estado deve fornecer. O argumento foi visto como um retrocesso pelos colegas4.

“Causaria até certa perplexidade nos aplicadores do Direito, que seguem a jurisprudência da Corte. Viria em prejuízo da segurança jurídica. Então, não seria o momento de se reiniciar uma discussão sobre uma matéria tão recentemente pacificada nas turmas”, destacou o ministro Jesuíno Rissato.

A posição de Rissato foi seguida por outros seis juízes: Laurita Vaz, Sebastião Reis Júnior, Rogerio Schietti, Reynaldo Soares da Fonseca, Antonio Saldanha Palheiro e Joel Ilan Paciornik.

O ministro Rogerio Schietti Cruz manifestou inclusive preocupação em rever a matéria. Lembrou que “nós estamos discutindo hoje na Suprema Corte algo que vai muito além do que singelamente se decidiu aqui no STJ: a autorização do cultivo da cannabis sativa para fins medicinais”. Schietti se referia ao julgamento sobre a descriminalização da posse de maconha, que foi retomado pelo STF em agosto, após quase 8 anos parado. O placar passou para 5×1 votos a favor, restando apenas o voto de mais um entre cinco ministros para se formar a maioria.

Em junho de 2023, no mesmo STJ, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca apontou que tanto a 5ª quanto a 6ª Turma do STJ também consideram que a conduta de plantar maconha para fins medicinais não configura tipicidade material, por isso há necessidade do salvo-conduto quando comprovada a necessidade médica. Assim, evita-se criminalizar pessoas em busca do direito fundamental à saúde, no caso o de uma paciente em tratamento para fibromialgia5.

“Nesse contexto, deve ser confirmada a liminar, para que as autoridades responsáveis pelo combate ao tráfico de drogas, inclusive da forma transnacional, abstenham-se de promover qualquer medida de restrição de liberdade, bem como de apreensão e/ou destruição dos materiais destinados ao tratamento da saúde do paciente”, argumentou o ministro Reynaldo.

Essa virada de chave começou em junho do ano passado, quando a 6ª Turma do STJ concedeu a primeira decisão favorável ao plantio. Até então, não era esse o entendimento. Em 2021, a 5ª Turma havia negado um salvo-conduto a uma paciente. Na ocasião, o relator Reynaldo Fonseca argumentou que a autorização para atividades relacionadas a matérias-primas de drogas é atribuição da Anvisa. Que esse tipo de autorização depende de critérios técnicos cujo estudo não compete ao juízo criminal. Uma posição bem diferente do atual entendimento da Corte.

No entanto, a concessão de salvo-conduto para o plantio de cannabis para fins medicinais pode não ser mais tão indispensável quando o STF formar maioria para descriminalizar a posse de maconha. No julgamento retomado em agosto, o voto que mais chamou atenção da opinião pública e dos próprios magistrados foi o do ministro Alexandre de Moraes, que apresentou argumentos sólidos em favor da descriminalização.

Para o ministro, uma substância que não representa risco significativo à saúde pública, apenas ao próprio usuário não deveria ser enquadrada como inconstitucional. Moraes enfatizou que, mesmo com bilhões de dólares investidos na “guerra às drogas”, o país se tornou o maior consumidor de maconha e o segundo maior de cocaína no mundo, mudando a posição que tinha até meados dos anos 1970, quando era um mero corredor do tráfico entre América do Sul e Europa. Essa realidade criou um mercado extremamente atrativo para os cartéis, considerando a geografia favorável do Brasil para o tráfico, com a terceira maior fronteira seca do mundo, incluindo os maiores produtores de cocaína e maconha6.

O ministro também denunciou o caráter racista da lei de Drogas. Ele se baseou em um estudo da Associação Brasileira de Jurimetria – ABJ, que analisou mais de 1,2 milhões de ocorrências policiais de apreensões de pessoas com a droga. Moraes afirmou que o branco precisa de 80% a mais de maconha do que o negro para ser considerado traficante7.

A tese apresentada pelo ministro propõe não tipificar como crime a conduta de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo maconha para consumo pessoal. Ele defendeu a presunção de usuário para quem possuir entre 25g e 60g de maconha ou 6 plantas fêmeas. No entanto, destacou que a presunção é relativa, permitindo a prisão em flagrante com base em critérios que caracterizam tráfico, como forma de acondicionamento, diversidade de entorpecentes e instrumentos como balança e cadernos.

Após a sustentação de Alexandre de Moraes, o ministro Gilmar Mendes, relator do caso, surpreendeu ao reajustar seu voto proferido em 2015. Antes favorável à descriminalização de todas as drogas, Mendes restringiu sua posição, alinhando-se ao Moraes e defendendo a liberação apenas da maconha. Justamente para formar maioria e avançar mais rápido na pauta8.

O artigo 28, segundo Mendes, deveria ser retirado o caráter penal e conferir uma sanção administrativa. Ele propôs a aplicação de medidas educativas, como o comparecimento a cursos, afastando repercussão criminal. Mendes fundamentou sua decisão argumentando que a tipificação penal do Artigo 28 viola o postulado constitucional da proporcionalidade. Para ele, trata-se de uma conduta cuja lesividade se restringe à esfera pessoal do usuário, não justificando a imposição de sanções criminais.

As posições dos ministros citados, tanto do STJ como no STF, mostram um entendimento de que o artigo 28 da lei de Drogas é inconstitucional. Por isso, se faz necessário avançar na garantia do direito individual ao auto cultivo. A única manifestação contrária, acima mencionada, do ministro Messod Azulay, argumentava que remédios de cannabis já estão disponíveis no mercado. Contudo, já há o consenso de que trata-se de uma deformidade jurídica encarcerar cidadãos que produzem em casa o mesmo princípio que está disponível nas gôndolas das farmácia.

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